Pelo direito a si de forma integral: para que mulheres vivam sem importunações

A colunista do Nós Maria Chantal traz relato pessoal sobre Educação Sexual nas escolas e aponta a importância desta ferramenta contra abusos e assédios

21|01|2025

- Alterado em 21|01|2025

Por Maria Chantal

O riso é uma poderosa ferramenta de ensino. Por mais subestimado que ele possa ser, é a partir desse instrumento que conseguimos ultrapassar barreiras e facilitar a compreensão e aprendizagem de temas classificados como tabu, desconfortáveis ou que causam sensação de afastamento. Utilizado enquanto material pedagógico desde os tempos de Platão, foi através do riso que me deparei com uma das melhores aulas sobre sexo, durante a minha infância.

Quando eu tinha mais ou menos 11 anos, recebi a minha primeira aula de educação sexual com educadores vestidos de palhaços e – literalmente – fazendo muita palhaçada. Eles explicaram um monte de coisas referentes ao conteúdo da cartilha que foi distribuída para cada aluno, mas só lembro dos assuntos referentes à camisinha, pois além de demonstrar como utilizá-la, a equipe criou alguns balões a partir do preservativo para mostrar que o material é bastante expansivo. Foi uma aula super interessante que aconteceu no auditório da escola. Infelizmente, na época, ao levar minha cartilha para casa, minha mãe guardou-a e me proibiu de ver aquele material novamente, pois ela achava que crianças não podiam receber educação sexual.

Um ponto crucial a todas as pessoas que cuidam de crianças e pré-adolescentes é a compreensão de que a educação sexual é importante e pode ser a principal (se não a única) ferramenta a apresentar um conceito básico para as relações humanas: o consentimento.


“Sem consentimento, qualquer ato sexual é uma violação dos direitos dessa pessoa. É importante entender que o consentimento deve ser explícito, contínuo e pode ser retirado a qualquer momento. Não é algo que pode ser presumido com base na roupa ou no comportamento da pessoa. Mesmo dentro de relacionamentos ou casamentos, o consentimento é essencial.”

Definição a partir do programa Pautas Femininas, episódio: “Precisamos falar sobre consentimento” da Rádio Senado.


Mas o que é consentimento?

A Planned Parenthood, organização defensora de direitos reprodutivos estadunidense, define consentimento como algo que é:

Dado de forma livre: uma escolha que você faz sem pressão, manipulação ou sob a influência de drogas ou álcool.

Reversível: Qualquer um dos envolvidos pode mudar de ideia sobre o que sente vontade de fazer, a qualquer hora. Mesmo que você já tenha feito isso antes, e mesmo se ambos estiverem nus na cama.

Informado: Você só pode consentir com algo se tiver a história completa. Por exemplo, se alguém diz que vai usar um preservativo, porém não tem, é um exemplo de falta de consentimento integral.

Entusiasmado: Quando se trata de sexo, você só deve fazer coisas que quer fazer, não o que os outros esperam que você faça.

Específico: Dizer sim a uma coisa (como beijar) não significa que você tenha dito sim a outras coisas (como fazer sexo).

A RAINN (The nation’s largest anti-sexual violence organization), organização anti violência sexual estadunidense, adiciona a lista que “não conta como um argumento de consentimento situações onde roupas são usadas para defender que houve um convite para uma cantada, beijo ou sexo.”

Consentimento é apenas um dos aprendizados que se tem ao acessar a educação sexual. No Brasil, os ministérios de Saúde e Educação desenvolvem o programa Saúde nas Escolas, que inclui esse tópico. Infelizmente, alguns cuidadores e responsáveis receiam ao saber que seus filhos estão tendo acesso a esse tipo de educação.

Este medo e desconfiança são gerados por materiais que promovem a desinformação ao espalharem que Educação Sexual nas escolas é incentivar crianças a transarem, por exemplo. No entanto, não há comprovação desta antecipação na iniciação sexual, como aponta o documento “Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade” , publicado em 2019 pela UNESCO. 

São eles:

– Abordar educação sexual nas escolas também é uma forma de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Em 2021, o número de notificações foi de 35.196 casos.

– A educação sexual traz para a sala noções para a prevenção dessa violência, como reconhecer que certas formas de tocar em crianças não são permitidas ou demonstrar o que fazer se alguém as tocar de maneira não permitida. 

– Derruba mitos sobre o cenário onde a violência acontece. No imaginário popular, estupros são cometidos por desconhecidos e fora do ambiente familiar, quando na realidade, “o cenário da violação que aparece com maior frequência nas denúncias é a residência da vítima e do suspeito: a casa da vítima (3.330) e a casa do suspeito (3.098). Desses agressores sexuais, 85% a 90% são pessoas CONHECIDAS: 30% são pais e 60% conhecidos da vítima e de sua família.

Não é só para crianças: educação sexual ajuda a proteger mulheres

Se engana quem pensa que existe uma idade limite para se expor à educação sexual. Essa é uma ferramenta que localiza adultos também. Dessa forma, se elevam as possibilidades para que, por exemplo, mulheres consigam reconhecer as violências que as atravessam enquanto vítimas ou testemunhas. Alguns estereótipos em torno do que seria “violência sexual” camuflam ações que são sim abusivas, entretanto, estão longe de deixarem marcas físicas. Também ficam muito bem mimetizados atos que são validados e protegidos por uma idealização do que deveria ser o papel do homem e da mulher dentro de uma relação. Um dos tipos de violencia sexual invisibilizada é o estupro marital, a prática de sexo forçado dentro de um relacionamento, independente do tempo de convívio, nível de intimidade ou existência de contrato material.

Talia Ancelmo, especialista em Direito da Família fez um estudo em que explica a relação entre estupro marital e a relação com violência de gênero. “O estupro marital é caracterizado através do ato sexual forçado, seja por ameaça física

ou emocional, dentro de uma união estável ou do casamento. As mulheres tendem a não realizar este tipo de denúncia, por enxergar o sexo como um dever do casamento, um ‘débito conjugal’”.

De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), 72% das vítimas de violência doméstica, sexual e/ou outras violências no Brasil, são mulheres. Destas, 59,8% são mulheres negras (pretas e pardas). Setenta e três por cento das violências aconteceram em ambiente familiar, conhecido pela vítima. De 2013 a 2019, ocorreu um progressivo aumento dos números de registros de violência doméstica, sexual e/ou outras violências. Porém, desde 2021 houve um crescimento anual exponencial nos números de registros, tendo em 2022 o registro da maior alta dos últimos 10 anos, com o número de 344.242 denúncias por violência doméstica, sexual e/ou outras violências.

Estudo do Ministério da Justiça e da Segurança Pública revela que os números são ainda mais alarmantes. Foram registrradas 67.626 ocorrências de estupro, o que equivale a um estupro a cada 8 minutos ao longo do ano de 2022, a maioria dos casos ocorrida no sudeste, com regustro de 22.917 casos.

Uma análise interessante é imaginar que, indiretamente, o acesso e ampliação da educação sexual contribuem para mudar de forma positiva a experiência que diferentes gêneros experimentam na cidade.

“89% das mulheres evitam sair à noite

82% Escolhem um caminho mais longo ou demorado,

quando acha que ele é mais seguro.”

Dado extraído do estudo: Vivências e demandas das mulheres por segurança no deslocamento (Instituto Patrícia Galvão/Instituto Locomotiva, 2024)

Conforme Art. 216-A.do Código Penal, o assédio é classificado enquanto crime, por mais que muitos insistem que essa é uma forma de elogiar. De acordo com a cartilha “Chega de Fiu-fiu: Vamos falar sobre assédio”, essa é uma abordagem ofensiva que deve ser coibida e pode ser denunciada pela Central de Atendimento à Mulher, Disque 100.

Pesquisa feita Instituto Patrícia Galvão vivências e demandas das mulheres por segurança no deslocamento, realizada em 2024, revela o quanto as cidades fornecem um ambiente extremamente hostil para as mulheres. Como forma de proteção, algumas estratégias são adotadas por elas, como a escolha de roupas e acessórios, compartilhar a rota com algum contato de confiança, escolha do assento no transporte público.

Em 2014, a atriz Shoshana Roberts publicou um vídeo, em que caminhava por 10 horas pelas ruas da cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. No registro é possível ouvir as “cantadas” que são direcionadas a ela, além de homens a perseguindo por algumas partes do trajeto. O experimento viralizou e fez com que esse debate ganhasse na internet e na televisão holofote. Infelizmente a atriz também acabou recebendo algumas ameaças.

A educação sexual sozinha não vai salvar as mulheres da falta de direito aos seus corpos e as cidades que habitam. No entanto, vem iniciando os incêndios necessários nessa poderosa estrutura colonial, para que haja o direito de ir e vir, o direito ao “não” e ao sim reversível. Além do conhecimento e amparo para reconhecer ou julgar se está passando por uma situação de violência sexual. Sendo o nosso consentimento também permeável de medos, pressões, carências e dependências. Precisa-se do apoio de políticas públicas com leis (como as 11.340/06 e 13.718/18) que protejam e possibilitem o direito a si de forma integral e permitam que mulheres possam caminhar pela vida sem importunações.

Referências

Sexual Consent

Como é o consentimento

Olhe mais de perto

Novo boletim epidemiológico aponta casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil

Boletim Epidemiológico – fevereiro de 2024

g1 – Educação sexual ainda é tabu no Brasil e adolescentes sofrem com a falta de informação

Educação sexual não estimula atividade sexual

UNFPA – Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências

RASEAM 2024 – Relatório Anual Socioeconômico da Mulher

Vivências e demandas das mulheres por segurança no deslocamento (Instituto Patrícia Galvão/Instituto Locomotiva, 2024)

ANSELMO, Thalia. UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE O ESTUPRO MARITAL E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COM BASE NO PATRIARCALISMO

Maria Chantal Maria Chantal é uma mulher cis, bissexual, angolana em diáspora no Brasil. Estudiosa autodidata da Ginecologia Natural, atua como educadora menstrual, compartilhando conhecimentos sobre prazer, rebolado afro referenciados e a naturalização do ciclo uterino.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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